[Foto: André Correia]
Esta escola não conhece o livro de outras regras culturais, não sabe lê-lo na realidade ignora sua própria existência
(Janaina de Oliveira Menezes)
Conhecimentos espontâneos são aqueles provenientes das praticas sociais cotidianas dos sujeitos, e constituintes de um legado cultural de grupos sociais ou comunidades especificas. Expressam-se por meio de um aprendizado informal e concreto, por vezes associado à ação. Esse aprendizado cultural possibilita ao sujeito promover interações bem-sucedidas e a participação ativa nas dinâmicas sociais da comunidade. As identidades psicossociais construídas nestes contextos são formadoras dos modos de ser dos sujeitos.
Enquanto saberes constituintes do ser do educando os conhecimentos espontâneos devem ser considerados no contexto escolar, visto que este é um dos espaços onde se processa de forma mais vívida a formação e o desenvolvimento do sujeito (Maia, 2005).
Os conhecimentos cotidianos e científicos são modos distintos de conhecer o mundo, sendo os primeiros caracterizados pela informalidade e concretude, vistos que são produzidos em situações imediatas de interação e em praticas sociais cotidianas. Já a sistematicidade e abstração são características do conhecimento cientifico pelas suas relações conceituais bem organizadas e os contextos formais onde são construídos e aprendidos. O domínio das funções psicológicas superiores se inicia nas relações entre humanos, e é através da educação formal que os sujeitos se apropriam de ferramentas específicas para seu desenvolvimento (Vygotsky, 1992). Os conceitos científicos formados mediante tal instrução proporcionam ao aluno modos de funcionamento cognitivos específicos, que o inserem numa cultura letrada.
Os conceitos espontâneos são reflexos das identidades sociais do aluno e suas formas de ser sujeito no mundo, é a livre expressão de sua subjetividade e de suas relações comunitárias.
Os sujeitos a partir de suas relações sociais co-constituem idéias e concepções de mundo que viabilizam uma interação satisfatória com seu meio, interpretando o mundo por esta via. Os fatores sociais e políticos emergentes no tempo e no espaço onde se encontram os sujeitos direcionam essas concepções e as determinam parcialmente. Ao tomar conhecimento destas condições que os asujeitam, no sentido de enquadrar sua subjetividade em uma temporalidade e formatar modos de ser específicos a mesma, estes têm a possibilidade de resistir e tornarem-se ativos produtores de sua história. A valorização de seus modos de vida, de sua cultura e da historia de sua comunidade são elementos de resistência do individuo ao assegurar e fomentar sua identidade cultural situado-a em um contexto social mais amplo. Os conhecimentos espontâneos são constituintes desta resistência ao total asujeitamento do indivíduo e por hora devem ser valorados no lócus mais afinco de formação humana, a escola.
Há também a necessidade de pensar o conhecimento científico como legitimado por uma cultura letrada dominante que não se isenta de intenções sociais e políticas, estando imersa em determinados paradigmas, nos quais é cingida de valores e ideologias. Esta legitima um determinado saber que é valorizado no lócus escolar em detrimento dos conhecimentos cotidianos trazidos pelos alunos e provenientes de uma cultura popular.
Contudo a escola ao mesmo tempo em que disponibiliza ao aluno este aprendizado formal e científico deve dar abertura as outras formas de conhecimento presentes em outras práticas sociais (Monteiro & Nacarato, 2005), constituir-se como um campo de construção de conhecimento onde todos os atores de tal processo tenham voz e vez, como propõe Monteiro e Nacarato (2005) referente à possibilidade de interação entres os saberes cotidiano e escolar no ensino da matemática:
“destacamos aqui a (possibilidade) de coexistência desses dois saberes, numa perspectiva de interação dialógica que enfatiza a diversidade de abordagens de um determinado problema como elemento constitutivo do que entende por Matemática sem sobreposição de saberes; ao invés disso aborda-a numa perspectiva de reconhecimento e valorização das multiplicidades de saberes e fazeres em diferentes praticas sociais”
O saber escolar é por eles concebido, portanto como um saber construído pela pratica pedagógica escolar e não como fruto de uma transposição de saberes científicos, tal pratica “se constituiria numa prática de denuncia e inclusão de saberes subjugados e excluídos” (Monteiro & Nacarato, 2005, p. 177)
Muitas vezes os objetivos e as proposta da escola assim como a gama de conceitos científicos disponibilizada por esta choca-se com os conhecimentos adquiridos nos espaços cotidianos, pois tais conhecimentos divergem em termos das situações onde são apropriados e forma de instrução disponível nessas situações, além de que por serem formas distintas de ver o mundo se fundam em perspectivas diferentes e por vezes contraditórias. Entretanto o espaço de sala de aula dever ser utilizados não como meio de sanar as contradições, mas de fomentar a investigação e construção do saber (Menezes, Sn.)
Essa necessidade dos conhecimentos escolares fazerem sentido para o aluno, isto é, serem significativos, estando em coerência com seus anseios e necessidades nos remetem a uma perspectiva de aproximação com a realidade onde este se insere.
A instrução formal torna-se sem significado para o aluno quando a dimensão a técnica é supervalorizada no lugar da dimensão relacional, que integra a totalidade do ser, suas questões sociais, culturais, familiares e econômicas, visto que estabelecer relações de ensino, de acordo com Maia (2005), é dar lugar ao implícito, as subjetividades, às intenções, aos simbolismos, as relações concretas da vida social e cultural e as pressuposições presentes na vida social. Sendo, portanto o processo de ensino-aprendizagem um aprender a estabelecer relações. Relação pressupõe intersubjetividade, que caracteriza sujeitos imersos em contextos sociais particulares e em uma historicidade característica da época em que vivem, não sendo, portanto estas subjetividades dissociáveis do meio onde se constituem.
A aprendizagem se dá numa relação entre sujeitos onde todos são participantes dos significados produzidos e possuidores de saberes passíveis de serem socializados (Menezes, Sn.) e que não devem ser apenas considerados como pré-requisitos para a aprendizagem de um conhecimento superior, mas como constituintes do conhecimento produzido em sala de aula (Monteiro & Nacarato, 2005). A busca de metodologias, abordagens e posturas que possibilitem a interlocução entre os saberes espontâneos e científicos mostra-se como um lugar relevante para a construção do conhecimento.
Essas relações de poder que formatam a superioridade do conhecimento científico frente à diversidade do cotidiano trazida pelo aluno devem ser consideradas também nas produções curriculares, já que estes vão além de instrumentos técnicos, mas acaba por se constituir num mecanismo de normatização e homogeneização da diversidade, como nos aponta Souza (2005), que não dá mais para sustentar uma compreensão apolitizada e tecnicista de currículo, com seus ritos pedagógicos focados numa unitária e homogênea cultura dominante sem ao menos questionar-se sobre os outros interesses, necessidades, objectivos, formas de pensamento, expressão e comportamento dos diferentes grupos que constituem o mosaico cultural das escolas.
Sem problematizar a universalidade de uma única cultura e a imobilidade de seus valores e conhecimentos. Para quem estes servem qual configuração social estes fazem repercutir, que concepções de mundo estes sustentam e reproduzem juntamente com o ideal humano que impõem.
O currículo deve, portanto contemplar as diversas possibilidades de conhecimentos característicos do mundo de crenças, significados, valores, atitudes e comportamentos das múltiplas culturas constituintes do cenário escolar. Para Souza “só com esta nova atitude se terá lugar para desvelamento dos significados profundos que subjazem as interacções pessoais, para a partir daí se construírem novos conhecimentos curriculares” (Souza, 2000, p. 06) Onde também uma concepção crítica do currículo por partes do professores é por ele enfatizada como meio de transformação social necessária.
A postura do professor quanto aos conhecimentos espontâneos esta intimamente ligada a sua concepção epistemológica frente ao conhecimento. Se o conhecimento produzido pela ciência e “trasposto” para sala de aula é concebido de um status mais elevado que os outros saberes possíveis das diversas experiências humanas, e considerados fora de seus contextos históricos e sociais de produção, nos dá indícios de uma concepção limitada e insuficiente para a compreensão dos processos de aprendizagem e desenvolvimento humano.
Um engajamento pedagógico com a imensidão cultural fora do portão da escola e ao mesmo tempo dentro de cada sujeito em formação, desempenhando assim um importante papel na produção de subjetividades no terreno escolar, onde a alteridade desconhecida é aceita e acolhida.
Souza (2000) como meio para uma reformulação das praticas pedagógicas nos trás o olhar etnográfico retratado acima referente às produções curriculares, definido como aquele que privilegia a realidades particulares, concretas, circunscritas a uma espaço e a um tempo determinado:
“o olhar etnográfico permitiu chegar ao conhecimento quotidiano daqueles alunos, baseado no sensório, no afecto, no imediato e no concreto. Ao captarem significativamente essa ‘cultura popular’ específica – veiculada igualmente pela música, pelas revistas, pela televisão – os professores conseguiram acender a uma parte importante da vida de seus alunos para, a partir daí lhes proporcionarem outros saberes atitudes, competências.” (p.)
Sendo este olhar implicado nas práticas pedagógicas do dia a dia escolar, que permitirá a promoção de uma aprendizagem de qualidade que gere agentes reflexivos e conscientes de si, de sua cidadania. Preservado assim nos lócus educacional o lugar dos conhecimentos espontâneos e das praticas culturais dos sujeitos
Qualidade de ensino parodiando o sucesso das relações de ensino estabelecidas entre sujeitos, democratizando assim seus espaços:
“a democratização no acesso à educação fundamental não significa necessariamente democratização no sucesso da mesma. A verdadeira democratização da educação tem mais haver com a capacidade que a escola tem em acolher em seu seio, sem gerar exclusão ou discriminação por insucesso escolar, a enorme diversidade social e cultural que a lei passou a determinar” (Souza, 2000, p. 108)
Democratização no acesso e no sucesso está estreitamente relacionada à capacidade da escola de trazer como parte constituinte de seus currículos e de suas práticas pedagógicas a diversidade cultural que a rodeia e que se expressa nos saberes cotidianos de seus alunos. A tomada de outra postura frente à realidade que a envolve e, portanto uma postura relacional entre o não-cotidiano e o cotidiano do aluno.
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